segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Papilote - Parte II





No dia seguinte, assim que o sol nasceu, todos acordaram com a barulheira de sempre... Dona Tianinha batendo as panelas e gritando aos plenos pulmões:

- Vamo levantá! O sor tá quente lá fora! Fia recói os cochão e ucê moleque, vai comprá pão!

Tomaram café brigando pelo pão maior, pelo mais branco, pelo mais moreninho, pelo primeiro, pelo último... Como era de costume. Limparam a bagunça e foram pra rua brincar. Dona Tianinha foi à rodoviária buscar a prima. Algumas horas depois ela voltou com a moça e foi logo chamando a criançada pra apresentar-lhes a parenta:

- Meninada, óia aqui a prima doceis! Que belezura de muié! – Mas não era bem assim que as crianças pensavam. Assim que a viram ficaram sabendo porque a chamavam de Maria Papilote. Seus cabelos estavam cheios de papelotes, pra deixar enrolado, como uns bobes improvisados.

Naquela manhã conversaram bastante, as duas primas, e à tarde foram bater perna na cidade. Quando chegou a noite, novamente seu Quinzinho foi contar história. Dessa vez falou sobre uma mulher, na janela da sua casa, esperando alguém passar pra lhe acender o cigarro, quando viu ao longe uma procissão.

- Era meia noite. – Prosseguiu seu Quinzinho. – E a muié tava que tava virano currupio de vontade fumá um cigarro, mas num tinha nem isquero nem fósforo.

- Mas e a procissão? – Perguntou uma das crianças.

- É, e que coisa estranha, procissão de madrugada. – Observou a Papilote.

- Carma! Num era uma procissão comum. Era a procissão das arma penada. Que andava pela rua de madrugada com vela na mão.

- Prá quê? – Perguntou, mais uma vez, a Papilote, que na sua idade já não acreditava mais nessas histórias de assombração.

- Escuita a história!

- Tá bem.

- Quando a procissão passou na frente da janela, a muié grito, pedino fogo, estendeu o braço e uma arma penada deu a vela prela e ela acendeu o cigarro.

- E aí?

- Aí, a hora que ela foi devorvê a vela pra arma penada, a procissão tinha sumido. Então ela apagô a vela e foi jogá fora, mas quando ela viu, a vela tinha virado um pedaço de osso e grudado no braço dela.

As crianças todas com os olhos arregalados, cada vez mais perto umas das outras, esperando, atenciosas o fim da história.

- A muié então, tentou de tudo quanto foi jeito tirá o pedaço de osso do braço, mas num conseguiu... Ficô um ano interinho com aquele pedaço de osso grudado nela. Uma noite dessas ela resorveu ficá na janela de madrugada traveiz. Aí ela viu, lá longe, a procissão da arma penada. Ela espero a procissão passá, esticô o braço e devorveu o osso, que, na hora que arma penada seguro, vortô a sê vela traveiz!

- Pai, credo, que dia que passa essa procissão aí?

- Chega criançada, agora é hora de durmi! – Ralhou dona Tianinha – Maria, aqui nóis improvisa pra durmi viu, cada um num canto, porque é muita gente e num cabe tudo nas cama. Ocê pode durmi ali no canto, perto da estante da sala. Cata esse coxuado aqui, estende lá e pega as coberta ali no guarda ropa.

Maria Papilote não gostou nem um pouquinho da idéia de dormir no chão duro, mas deitou ali e ficou tentando se ajeitar. Passou um tempo lá, olhando pra cima, indignada, pensando numa cama macia pra dormir e olhando duas das primas numa cama de solteiro lá no quartinho da bagunça.

Ela teve uma idéia, levantou-se e foi, pé ante pé, serpenteando até a geladeira. Abriu-a, colocou as duas mãos no congelador, deixou-as lá por um tempo e foi sorrateiramente para perto da cama das meninas. Retirou as cobertas dos pés delas e, sem dó, tascou-lhes um aperto de mão gelado nos tornozelos.

Foi um pulo só e uma gritaria danada. As meninas morrendo de medo saíram correndo do quarto e foram dormir na sala junto com as outras crianças. Maria Papilote, que não era boba, dormiu confortavelmente na cama do quartinho da bagunça.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Conto: Papilote



Dona Tianinha estava entrando em casa, tropeçando nas filhas e sobrinhas que pareciam mais uma infestação, quando deu a notícia:
- Maria Papilote vem aqui essa semana visitá nóis. Meninada, vamo arrumá bem a casa, prela não sair espaiano que nóis vive num chiqueiro!
- Mas quem qui é essa mãe?
- Que nome, tia!
- Ela é minha prima lá da capitar, ela nasceu aqui e nóis brincava junta quando era criança, mas a minha tia foi embora pra cidade grande há uns par de ano. Mas vamo Pará de prosa. Pode i passano a mão nas vassora.
E foram limpando, varrendo, espanado, lavando... Um bando de meninas que mais parecia um formigueiro. Foi um belo dia de trabalho, até que terminaram a limpeza e a casa ficou um brilho só. Era impressionante uma casa, com aquela quantidade de crianças, estar tão limpa e arrumada. E quando digo “quantidade de crianças”, bota quantidade nisso. Eram três filhas e um filho caçula. Cinco sobrinhas e três sobrinhos, além da dona Tianinha e do seu Quinzinho, o pai.
Na hora de dormir:
- Meninada, vem aqui que eu vô pô uceis pra durmi. Os menino dorme no chão, ali atrais do sofá. Põe aquele coxuado ali e vamo deitá. As menina dorme duas comigo, duas no sofá grande, uma no sofá pequeno e três na cama do quartinho.
- Ahh não! A senhora sabe que nóis num dorme sem história... Cadê o pai, fala prele vim contá história senão nóis num dorme!
- É memo tia Tianinha! Se o tio Quinzinho num vié contá história pá nóis, nóis vamo ficá aqui gritano a noite interinha!!!
E começaram a gritaria. Era um absurdo! Parecia um galinheiro de aves hiperativas sedentas e famintas.
- Tá bão! – Gritou seu Quinzinho lá de fora. – Tô ino, tô ino!
Sentaram-se todos ao redor dele e prestavam bastante atenção na história que falava de um ser estranho que, segundo ele, tinha visto numa fazenda longe dali. O corpo-seco. Ele dizia que uma pessoa que era muito ruim, não morria nunca, virava corpo-seco, e ficava condenado a assombrar os outros pela eternidade.
- Esse corpo-seco meninada, esse aí era pior que os ôto. Além dele sê ruim quenem o cão, ele batia na mãe.
- Credo tio!
- É, ele era tão ruim que um dia ele chegou duma festa na cidade e a mãe dele tinha dexado o cavalo dele fugi. O que que ele feiz?
- O quê???
- Pois a sela na véia, muntô nela e desceu a chibata.
- Que horror!
- É por isso que ele fica lá assombrano a fazenda que era dele...
- Mas esse bicho ixiste memo tio?
- Garanto puceis que ixiste. Ele tem um zóio vermeio quenem fogo.
- Ahh... Eu duvido!
- Ceis pode acreditá! Eu acendi meu cigarro de paia no zoião de fogo dele...
- Tá bão, chega de história, vamo durmi criançada!
- Ahhh mãe!
- Vamo já.
E foram cada um pro seu cantinho dormir.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Caldo de Cana



"[CLIENTE] - Dois reais o caldo de cana?! Tá caro heim?!

[ATENDENTE] - Você já viu quanto carro à álcool andando na rua? O Brasil consome vinte bilhões de litros de álcool por ano e a agricultura nacional não está dando conta de produzir tanta cana de açúcar, mesmo aumentando a área cultivada em dezesseis por cento...


[PAUSA]


[CLIENTE] - Me vê uma garrafa pra viagem..."


Este é o texto de um vídeo que rola no intervalo dos programas da TV cultura e me chamou muito a atenção pois ele reflete exatamente o contrário da mentalidade da maioria dos brasileiros. Quem trabalha com atendimento ao público sabe bem disso.

" O meu direito em primeiro lugar", todos pensam, questionam preços, eficiência, dinamismo, inovação e, claro, as empresas devem isso aos seus clientes.

Mas analisando o comportamento dos clientes eu, particularmente, acabo traçando uma linha divisória entre "cliente" e "humano". Da mesma forma que uma pessoa transforma-se completamente ao entrar em um carro, muda também de comportamento ao tornar-se um "cliente", ao estar do lado de fora de um balcão. Nesse momento, a pessoa passa a pensar exclusivamente em ser servida, e bem servida. É quase uma overdose de egoísmo.

Existem, também, algumas pessoas que ultrapassam a fase de querer ser bem servida e querem de toda forma tirar vantagem, ou pelo menos sentir que está em vantagem. Os sentimentos em relação ao atendente ou vendedor se anulam e o cliente nem quer saber se a loja já deveria ter fechado à meia hora atrás, ou se o funcionário deveria ter saído para almoçar a duas horas, ou se existem mais pessoas para ser atendidas.

Se existissem mais clientes com o mesmo modo de pensar do rapaz que comprou o caldo de cana, muitos casos de estresse e depressão poderiam ser evitados.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Maíra- Final



Maíra não era capaz de entender como uma pessoa, ou os lhos de uma pessoa pudessem causar tanto caos em sua mente. Nas noites seguintes, ela sonhava com aqueles olhos pretos e, quando acordava, saia correndo da cama para olhar pela janela, ver se os tais olhos estavam lá.

Naqueles dias, ela não conseguia pensar, comer ou respirar outra coisa além dos olhos. Tudo estava tornando-se um eufórico frenesi que evoluía a cada hora.

Certo dia, a moça tomava café da manhã olhando para fora, o dia indeciso, a chuvinha fina brigando com o sol altivo, quando teve um ímpeto. Decidiu resolver seus problemas. Saiu porta afora e iniciou uma caçada aos olhos pretos que lhe tiravam da sua tão amada e pacífica mesmice patética.

Maíra corria pela rua arborizada sentindo o spray fino da chuva fraca que caía enquanto o forte sol ardia sua pele. Essa mistura de estados metereológcos resultava numa bela explosão de cores no céu, um belo arco-íris, onde podia-se ver todos os espectros de cor. Mas a moça frenética nem percebeu a beleza das cores acima de sua cabeça... Só pensava nos olhos pretos e coloridos. Ela correu muito, e chegou a um lugar ermo, um casebre velho caindo aos pedaços, uma cerca quebrada, um pasto abandonado e um poço.

Ela parou de correr,aproximou-se do poço, olhou para baixo. O que viu? Sobre o espelho d'água, olhos pretos e o belo arco-íris do céu, mas agora na água. Olhos pretos e coloridos.

Maíra sentiu-se envolver por aquela mistura de preto e cores. Sentia as cores entrando por eu corpo, tomando conta de seu estômago, de seu pulmão enquanto os olhos pretos, o preto, tomava conta de sua mente até a completa escuridão.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Maíra - 02



Ela, que estava acostumada com o estupor de sua mesmice tediosa, sentiu-se ferida. Sua realidade pálida havia se chocado fortemente com aqueles olhos tão pretos e inexplicavelmente tão coloridos. Não sabia se estava começando a delirar. Muitos sentimentos passeavam ao seu redor. Não podia decidir se ficava ofendida, ferida, incomodada, ou alegre, estasiada e eufórica. Só sabia de uma coisa. Tinha de deixar a janela, sair do quarto.

Foi ter com seus parentes; jantar com eles. Mas não conseguiu comer olhando para todas aquelas faces sem rostos ao seu redor e todas as vozes retorcidas que ecoavam delas.

Tinha de sair de lá, mas não queria recolher-se, novamente, ao quarto, então, deitou-se no chão da cozinha, embaixo da mesa de jantar, para tentar esconder sua vista das faces sem rostos que tanto a amedrontavam e nauseavam.

Começou a sentir algo estranho em seu corpo. Algo a tocava. Coisas percorriam todo o seu corpo. Passou a debater-se quando percebeu que eram lagartixas pequenas e inquietas, que corriam e serpenteavam por cada pedaço de pele no seu corpo, com aquelas pequenas patas pegajosas. Entravam por sua boca, por seu nariz e por seus olhos. Estava sufocando... Tudo acabou. Um apagão.

Quanto tempo? Não sabia... Não sabia nem se estava pensando, ou se havia morrido... Só sabia que estava no escuro.

Maíra acordou sobressaltada e ofegante, olhou ao redor. O quarto de sempre, com a janela de sempre. No radiorrelógio, dez da manhã; do lado, um termometro, dipirona, uma bacia com água e uma toalha. Em sua cabeça, dor; em sua garganta, também; em sua mente, os olhos, tão pretos e coloridos... (CONTINUA)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Maíra



Maíra estava sentada perto da janela, em seu quarto, olhando o céu imaculadamente azul de um domingo parado, com um sol austero que reinava em tirania. Seus olhos estavam fixos, mas seu olhar era difuso, como se analizasse fria e atentamente o casamento do nada com a monotonia. Tinha a impressão, às vezes, que tudo ganhava uma coloração sépia, a não saer pelo céu. Ficou parada ali quase a tarde toda. Só se distraia quando, eventualmente, um passarinho voava rápido, perto da janela.
Quando parecia que Maíra tornara-se um objeto de decoração em seu próprio quarto, como uma escultura retorcida e esquecida num canto, algo chamou, extraordinariamente, sua atenção. Era uma pessoa; um homem, passando pela rua. Ela não se deu conta dos detalhes desua aparência, estatura, idade, se era gordo, magro, branco ou pardo. Maíra, tão somente, enchergava seus olhos. Profundos olhos que eram um misto de mistério e doçura. Muito pretos. Vítreos. Realmente como um vitral, ou um caleidoscópio, que evocava-lhe as cores mais belas e atraentes... (CONTINUA)

sábado, 29 de agosto de 2009

O Boi



Essa aconteceu no tempo do meu biso, seu Joaquim, que foi testemunha ocular e auditiva do tal acontecido.

Mas vamos começar do começo.

O seu Toninho acordou atrasado, pegou três pamonhas, um pedaço de rapadura e foi comendo pelo caminho até na roça, onde ia colher batata.

Trabalhava um tempinho e bebia um copo de café, que o amigo, seu João, tinha levado.

– Ara, sô! Café mai doce!

– Recrama, mai ta bebeno né, cumpadi!

– Num tem ôto, uai.

E assim seguiu a manhã toda, até chegar a hora do almoço, quando os dos foram tomar suas refeições perto de um barranco.

Seu João comeu arroz, feijão, frango assado e salada de couve. Seu Toninho, que gostava de uma comida forte, mandou pro bucho uma dobradinha, batata doce afogada, macarrão e ovo frito... Tudo com bastante farinha de milho.

– O cumpadi ta firme na bóia hoje né?!

– Ô! Tem que cumê bem,sô. Saco vazio num pára em pé!

Depois que terminaram de comer, ficaram de papo pro ar, só olhando a paisagem. Perceberam, então, que tinha um belo dum boi pastando ali perto. Ficaram observando o bicho, até que seu Toninho levantou-se, foi até uma moita para dar sossego pra barriga que num parava de chiar.

Um tempinho depois, ouviu-se um barulhão. O boi tomou um susto, caiu barranco abaixo, quebrou o pescoço e... Essa foi a primeira vez que um peido rendeu um churrasco daqueles!

domingo, 23 de agosto de 2009

"Rec-rec-rec-rec tuuum!" Parte 2



O padre entrou e fez-se um instante solene de expectativa... Que logo foi interrompido pelo próprio padre saindo correndo pela porta, tropeçando na batina e beijando o chão.

– Seu padre! Pelo amor de Deus, que que tem lá dentro? – Perguntou dona Lúcia.

– Padre, o sinhô ta branco! Que foi que o sinhô viu lá dentro? – Indagou seu Chico.

– Um bicho. – Respondeu o padre. – Um bicho cabeludo.

– Credo! – Todos, em uníssono.

– Um bicho cabeludo, que correu atrás de mim.

– Mas deu pra vê que bicho que era? – Perguntou dona Lúcia, arregalando os olhos, enquanto via dona Maria, a dona da casa, chegando do serviço, espantada com o tumulto na porta de sua residência.

– Num vi, minha fia, tava escuro...

– Ara! Que que tá aconteceno aqui? – Quis saber dona Maria.

– Tem um bicho cabeludo na tua casa cumadi! – Exclamou dona Lúcia. – E correu atrás do padre!

– Bicho cabeludo? Pêra já!

– Cumadi?!

Dona Maria passou por cima de todos e entrou na casa de supetão. Podia-se ouvir:

– Ara! Coisa feia! Que que ocê tá fazeno aí, Xandoca?! Ô Zé! Zé cadê ocê? – Dona Maria saiu na porta. – Argum doceis viu o Zé?

Ninguém entendeu. Parecia uma procissão de gente com cara de tonto.

– Cumadi Maria, ocê num fico com medo da assombração?

– Ara, Lúcia! Que assombração o quê...?

– Que gritêro que é esse Maria? – Chegou seu Zé esbravejando.

– Que gritêro que é esse?! É ocê impiastro de ômi! Cume que ocê me larga a tramela da porta do chiquero aberta?

– Quê?

– É! A Xandoca tá lá dendicasa, patinano no chão encerado. Num consegue andá, patina, patina e cai. “Rec-rec-rec-rec tuuum!”.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"Rec-rec-rec-rec tuuum!"



– Lata dágua na cabeeeeeeçaaaaaaa... Lá vai Mariiiiia – Cantava dona Lúcia enquanto passava a enceradeira pelo imenso assoalho da casa grande. O chão ficou com tanto brilho que dava até pra palitar os dentes olhando nele. Quando terminou tudo, passou a chave na porta da sala e saiu pela cozinha. Tinha de ir à venda do seu Tonico, comprar mistura pra janta. Esquecida como ela só, dona Lúcia deixou a porta da cozinha aberta...

Algum tempinho depois ela voltou, colocou a chave na fechadura da porta da sala, deu a primeira volta e ouviu: “Rec-rec-rec-rec-rec tuuum!” Deu mais uma volta na chave, agora com a porta destrancada, pegou na maçaneta para abri-la e: “Rec-rec-rec-rec tuuum, rec-rec-rec tuuum!”

– Credo em cruiz! Que que é isso? Só pode sê assombração! Óia que baruio! Eu que num vo entrá aí dentro! – E saiu correndo. Logo voltou com seu Chico a tira colo.

– Óia Chico, que baruio!

E ouvia-se: “Rec-rec-rec-rec-rec... Rec-rec-rec tuuum!”

– Lúcia! Que que é isso fia? Só pode se coisa do ôto mundo! Jandira, corre aqui vem vê muié! – Gritou ele, para esposa que sondava de longe.

Mais uma vez puderam ouvir: “Rec-rec tuuum... Rec-rec-rec-rec-rec tuuum.”

Jandira benzeu-se, horrorizada – Deus me livre! Que que é isso? Chico! Vai chamá o padre!

E seu Chico foi chamar o padre. Enquanto eles não voltavam, foi uma sessão de “rec-rec-rec-rec-rec tuuum”, alguma exclamação e horror das mulheres e mais um “rec-rec-rec-rec-rec tuuum”.

O padre, enfim, chegou até lá e, intrigado, pediu silêncio para analisar a situação e ouvir direito o som: “Rec-rec-rec-rec-rec tuuum”.

– Eu vou entrar. – Disse o padre.

– Não seu padre! E se fô o coisa ruim? – indagou dona Lúcia.

– Deixe de besteira minha filha... Vou entrar.

E entrou. (CONTINUA...)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A Mulher de Branco - Final



– Que foi Aparecida? – perguntou a mãe vendo-a chegar esbaforida em casa – Cê ta branca! Que que aconteceu?

– Ai mãe! A muié de branco correu atrás de nóis!

– Que jeito minha fia? De nóis quem?

– De mim e dum homem que tava lá na rua da delegacia.

– Ara!

– É verdade mãe.

– Mas ocê viu ela fia?

– Vê eu num vi, mas ela tava correno atrás de nóis. Eu escutei quando o homem gritou e saiu num carrerão. Aí eu aí correno tamém. Ele tava mais na minha frente e ia atrás. Eu até pedi pra ele me esperar porque eu tava com medo, mas ele tava com mais medo ainda... Corria, corria e nem queis me esperar.

– Virge... Mas o que ocê tava fazendo lá na rua Aparecida?

– Eu tinha ido busca uns gainho de erva doce pra fazer um chá pra senhora mãe. Lá no terreiro de frente pra delegacia tem uns pé de erva doce. Eu tava lá panhano um tando e a hora que eu levantei de trás do muro, escutei o homem gritano e saí correno tamém.

– Sei... Vai falano...

– Eu tava com xale da senhora no pescoço, mas na hora de panhá erva doce, tava arrastano pro chão, aí eu enrolei na cabeça... Eu até machuquei meu pé porque meu chinelo rebento e eu tive que ir descalça, com esse frio.

– Aparecida...

– Senhora?!

– Óia no espelho, fia

Quando Aparecida olhou-se no espelho, viu a camisola branca, o xale branco e a sua cara de assustada virou um riso só.

– Virge, mãe... A muié de branco era eu!

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A Mulher de Branco



– É claro que é verdade! – Exclamou Tião, quase pondo os bofes pra fora – Eu to até branco, com as pernas bambas! Eu tava subindo a ladeira da delegacia, eram umas onze horas da noite, tava frio e não tinha ninguém na rua. Aí, quando eu tava passando bem em frente à delegacia, eu vi, saindo detrás da mureta do terreiro do outro lado da rua. Era a visão do inferno! Magra, encurvada, com um véu branco envolvendo a cabeça e descalça.

– E aí Tião? Que que o cê fez?

– Eu? Eu corri! – Como se fosse preciso perguntar, pois, tratando-se do Tião... Ele corre até da própria sombra. – Corri e gritei, “A Mulher de Branco!!!”. Corri mais que as pernas e, quando dei uma olhada pra trás...

– O quê?

– Num é que ela tava correndo atrás de mim?! Eu corria e gritava, ela corria atrás e gritava pra eu esperar.

– E o cê esperou?

– E eu sou besta? Eu ia esperar a assombração pra ela me pegar e...

– E...?

– E... Ah sei lá o quê. Num sei o que que assombração faz com a gente, mas num deve de ser bão.

– Ta, mas continua o causo!

– Quando eu tava passando pela encruzilhada que desce pra rua da igreja, ela sumiu!

– Sumiu?

– Sumiu... Nem sinal dela. Daí eu entrei em casa, rezei um terço e agora eu to aqui, contando tudo proceis.

E Tião contou no bar, na padaria, no açougue... Contou pro leiteiro, pro pedreiro e pro pipoqueiro e logo a história espalhou-se pela cidadezinha toda... (Continua)

sábado, 8 de agosto de 2009

Os Três Conselhos - Fim



No outro dia, passando em frente a uma propriedade, João percebeu que havia uma moça amarrada em um poste e um guarda ao lado. Ficou indignado e já ia perguntando o motivo de aquela moça estar ali presa daquele jeito, mas ponderou e lembrou-se do segundo conselho: “ Você não tem nada com a vida de ninguém”. Resolveu, então, acatar o conselho e não perguntar nada.

Assim, o guarda indagou-lhe:

- Não vai querer saber por que esta donzela está presa ali?

- Não.

- Não mesmo? – Insistiu.

- Não. – Disse João novamente.

Imediatamente o guarda pegou uma faca e cortou as cordas que atavam a moça, libertando-a. João não entendeu nada. A moça abraçou-o e explicou-lhe que o dono daquela propriedade era um excêntrico e sádico e que, toda vez que alguém questionava o motivo de alguma moça estar presa lá, ele as matava, mas se, por acaso, uma pessoa não demonstrasse interessa, as moças eram libertas.

O guarda ofereceu-lhe pouso, mas João preferiu seguir viagem – nunca se sabe o que pode acontecer à noite na casa de um excêntrico e sádico.

Seguiu mais algumas horas que pareciam as mais longas e pesadas de toda a viagem, mas, finalmente, avistou o casebre na penumbra do anoitecer. Estava um pouco diferente do que costumava ser. Parecia um pouco maior e mais novo. Havia um jardim e uma horta e uma vaca e as janelas estavam pintadas de azul! Ah! Que prazer era volta pra casa. Como o até o cheiro do ar das redondezas era diferente!

Chegou até a porta e resolveu espiar pelo buraco da fechadura antes de entrar. Pôde observar em um canto um homem e uma mulher, no outro canto, sentada em um sofá, viu Maria e havia um rapaz muito bem aparentado deitado em seu colo, enquanto ela afagava seus cabelos.

João foi tomado de uma ira feroz e crescente! Sacou sua cartucheira e decidiu entrar e acabar com a vida da ingrata da mulher que não conseguiu sequer esperá-lo e já caiu nos braços de outro enquanto ele esforçava-se para dar-lhes o sustento. Ah! Não podia ter feito isso, Maria.

Ia abrindo a porta quando lembrou-se do terceiro conselho: “ Pense três vezes antes de tomar uma atitude”. Assim, olhou de novo pela fechadura e viu sua esposa beijando o rosto do rapaz. Desconcertou-se, não tinha jeito. Agora ia matá-los, tinha de defender sua honra, lavá-la com o sangue da mulher adúltera e do safado que a roubara dele. Mas ponderou e olhou novamente pela fechadura. Viu o rapaz levantando-se, estendendo a mão para Maria e dizendo:

- Sua benção, minha mãe! Vou indo dormir.

João, envergonhado, lembrou-se, então, do filho que deixara no ventre de Maria quando seguiu viagem. Com os olhos vermelhos de choro, abriu a porta e a alegria foi imensa! Seus filhos mais velhos receberam-no com muito amor, assim como sua sempre fiel esposa. Abraçou seu filho mais moço e pediu perdão por não ter acompanhado sua criação.

Passaram a noite contando histórias, conhecendo-se de novo, achegando-se uns aos outros novamente. Nesse momento, João lembrou-se do pão. Devia cortá-lo apenas quando estivesse muito feliz, então o partiu. Tamanha foi a surpresa quando viram que o bendito pão estava recheado não de queijo, ou torresmo, mas de dinheiro, mas muito dinheiro. Bem mais do que a quantia que receberia se tivesse feito o acerto com o patrão da maneira convencional. Mas o mais importante ali não era o dinheiro, mas a felicidade e a lealdade daquela família.

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