segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Papilote - Parte II





No dia seguinte, assim que o sol nasceu, todos acordaram com a barulheira de sempre... Dona Tianinha batendo as panelas e gritando aos plenos pulmões:

- Vamo levantá! O sor tá quente lá fora! Fia recói os cochão e ucê moleque, vai comprá pão!

Tomaram café brigando pelo pão maior, pelo mais branco, pelo mais moreninho, pelo primeiro, pelo último... Como era de costume. Limparam a bagunça e foram pra rua brincar. Dona Tianinha foi à rodoviária buscar a prima. Algumas horas depois ela voltou com a moça e foi logo chamando a criançada pra apresentar-lhes a parenta:

- Meninada, óia aqui a prima doceis! Que belezura de muié! – Mas não era bem assim que as crianças pensavam. Assim que a viram ficaram sabendo porque a chamavam de Maria Papilote. Seus cabelos estavam cheios de papelotes, pra deixar enrolado, como uns bobes improvisados.

Naquela manhã conversaram bastante, as duas primas, e à tarde foram bater perna na cidade. Quando chegou a noite, novamente seu Quinzinho foi contar história. Dessa vez falou sobre uma mulher, na janela da sua casa, esperando alguém passar pra lhe acender o cigarro, quando viu ao longe uma procissão.

- Era meia noite. – Prosseguiu seu Quinzinho. – E a muié tava que tava virano currupio de vontade fumá um cigarro, mas num tinha nem isquero nem fósforo.

- Mas e a procissão? – Perguntou uma das crianças.

- É, e que coisa estranha, procissão de madrugada. – Observou a Papilote.

- Carma! Num era uma procissão comum. Era a procissão das arma penada. Que andava pela rua de madrugada com vela na mão.

- Prá quê? – Perguntou, mais uma vez, a Papilote, que na sua idade já não acreditava mais nessas histórias de assombração.

- Escuita a história!

- Tá bem.

- Quando a procissão passou na frente da janela, a muié grito, pedino fogo, estendeu o braço e uma arma penada deu a vela prela e ela acendeu o cigarro.

- E aí?

- Aí, a hora que ela foi devorvê a vela pra arma penada, a procissão tinha sumido. Então ela apagô a vela e foi jogá fora, mas quando ela viu, a vela tinha virado um pedaço de osso e grudado no braço dela.

As crianças todas com os olhos arregalados, cada vez mais perto umas das outras, esperando, atenciosas o fim da história.

- A muié então, tentou de tudo quanto foi jeito tirá o pedaço de osso do braço, mas num conseguiu... Ficô um ano interinho com aquele pedaço de osso grudado nela. Uma noite dessas ela resorveu ficá na janela de madrugada traveiz. Aí ela viu, lá longe, a procissão da arma penada. Ela espero a procissão passá, esticô o braço e devorveu o osso, que, na hora que arma penada seguro, vortô a sê vela traveiz!

- Pai, credo, que dia que passa essa procissão aí?

- Chega criançada, agora é hora de durmi! – Ralhou dona Tianinha – Maria, aqui nóis improvisa pra durmi viu, cada um num canto, porque é muita gente e num cabe tudo nas cama. Ocê pode durmi ali no canto, perto da estante da sala. Cata esse coxuado aqui, estende lá e pega as coberta ali no guarda ropa.

Maria Papilote não gostou nem um pouquinho da idéia de dormir no chão duro, mas deitou ali e ficou tentando se ajeitar. Passou um tempo lá, olhando pra cima, indignada, pensando numa cama macia pra dormir e olhando duas das primas numa cama de solteiro lá no quartinho da bagunça.

Ela teve uma idéia, levantou-se e foi, pé ante pé, serpenteando até a geladeira. Abriu-a, colocou as duas mãos no congelador, deixou-as lá por um tempo e foi sorrateiramente para perto da cama das meninas. Retirou as cobertas dos pés delas e, sem dó, tascou-lhes um aperto de mão gelado nos tornozelos.

Foi um pulo só e uma gritaria danada. As meninas morrendo de medo saíram correndo do quarto e foram dormir na sala junto com as outras crianças. Maria Papilote, que não era boba, dormiu confortavelmente na cama do quartinho da bagunça.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Conto: Papilote



Dona Tianinha estava entrando em casa, tropeçando nas filhas e sobrinhas que pareciam mais uma infestação, quando deu a notícia:
- Maria Papilote vem aqui essa semana visitá nóis. Meninada, vamo arrumá bem a casa, prela não sair espaiano que nóis vive num chiqueiro!
- Mas quem qui é essa mãe?
- Que nome, tia!
- Ela é minha prima lá da capitar, ela nasceu aqui e nóis brincava junta quando era criança, mas a minha tia foi embora pra cidade grande há uns par de ano. Mas vamo Pará de prosa. Pode i passano a mão nas vassora.
E foram limpando, varrendo, espanado, lavando... Um bando de meninas que mais parecia um formigueiro. Foi um belo dia de trabalho, até que terminaram a limpeza e a casa ficou um brilho só. Era impressionante uma casa, com aquela quantidade de crianças, estar tão limpa e arrumada. E quando digo “quantidade de crianças”, bota quantidade nisso. Eram três filhas e um filho caçula. Cinco sobrinhas e três sobrinhos, além da dona Tianinha e do seu Quinzinho, o pai.
Na hora de dormir:
- Meninada, vem aqui que eu vô pô uceis pra durmi. Os menino dorme no chão, ali atrais do sofá. Põe aquele coxuado ali e vamo deitá. As menina dorme duas comigo, duas no sofá grande, uma no sofá pequeno e três na cama do quartinho.
- Ahh não! A senhora sabe que nóis num dorme sem história... Cadê o pai, fala prele vim contá história senão nóis num dorme!
- É memo tia Tianinha! Se o tio Quinzinho num vié contá história pá nóis, nóis vamo ficá aqui gritano a noite interinha!!!
E começaram a gritaria. Era um absurdo! Parecia um galinheiro de aves hiperativas sedentas e famintas.
- Tá bão! – Gritou seu Quinzinho lá de fora. – Tô ino, tô ino!
Sentaram-se todos ao redor dele e prestavam bastante atenção na história que falava de um ser estranho que, segundo ele, tinha visto numa fazenda longe dali. O corpo-seco. Ele dizia que uma pessoa que era muito ruim, não morria nunca, virava corpo-seco, e ficava condenado a assombrar os outros pela eternidade.
- Esse corpo-seco meninada, esse aí era pior que os ôto. Além dele sê ruim quenem o cão, ele batia na mãe.
- Credo tio!
- É, ele era tão ruim que um dia ele chegou duma festa na cidade e a mãe dele tinha dexado o cavalo dele fugi. O que que ele feiz?
- O quê???
- Pois a sela na véia, muntô nela e desceu a chibata.
- Que horror!
- É por isso que ele fica lá assombrano a fazenda que era dele...
- Mas esse bicho ixiste memo tio?
- Garanto puceis que ixiste. Ele tem um zóio vermeio quenem fogo.
- Ahh... Eu duvido!
- Ceis pode acreditá! Eu acendi meu cigarro de paia no zoião de fogo dele...
- Tá bão, chega de história, vamo durmi criançada!
- Ahhh mãe!
- Vamo já.
E foram cada um pro seu cantinho dormir.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Caldo de Cana



"[CLIENTE] - Dois reais o caldo de cana?! Tá caro heim?!

[ATENDENTE] - Você já viu quanto carro à álcool andando na rua? O Brasil consome vinte bilhões de litros de álcool por ano e a agricultura nacional não está dando conta de produzir tanta cana de açúcar, mesmo aumentando a área cultivada em dezesseis por cento...


[PAUSA]


[CLIENTE] - Me vê uma garrafa pra viagem..."


Este é o texto de um vídeo que rola no intervalo dos programas da TV cultura e me chamou muito a atenção pois ele reflete exatamente o contrário da mentalidade da maioria dos brasileiros. Quem trabalha com atendimento ao público sabe bem disso.

" O meu direito em primeiro lugar", todos pensam, questionam preços, eficiência, dinamismo, inovação e, claro, as empresas devem isso aos seus clientes.

Mas analisando o comportamento dos clientes eu, particularmente, acabo traçando uma linha divisória entre "cliente" e "humano". Da mesma forma que uma pessoa transforma-se completamente ao entrar em um carro, muda também de comportamento ao tornar-se um "cliente", ao estar do lado de fora de um balcão. Nesse momento, a pessoa passa a pensar exclusivamente em ser servida, e bem servida. É quase uma overdose de egoísmo.

Existem, também, algumas pessoas que ultrapassam a fase de querer ser bem servida e querem de toda forma tirar vantagem, ou pelo menos sentir que está em vantagem. Os sentimentos em relação ao atendente ou vendedor se anulam e o cliente nem quer saber se a loja já deveria ter fechado à meia hora atrás, ou se o funcionário deveria ter saído para almoçar a duas horas, ou se existem mais pessoas para ser atendidas.

Se existissem mais clientes com o mesmo modo de pensar do rapaz que comprou o caldo de cana, muitos casos de estresse e depressão poderiam ser evitados.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Maíra- Final



Maíra não era capaz de entender como uma pessoa, ou os lhos de uma pessoa pudessem causar tanto caos em sua mente. Nas noites seguintes, ela sonhava com aqueles olhos pretos e, quando acordava, saia correndo da cama para olhar pela janela, ver se os tais olhos estavam lá.

Naqueles dias, ela não conseguia pensar, comer ou respirar outra coisa além dos olhos. Tudo estava tornando-se um eufórico frenesi que evoluía a cada hora.

Certo dia, a moça tomava café da manhã olhando para fora, o dia indeciso, a chuvinha fina brigando com o sol altivo, quando teve um ímpeto. Decidiu resolver seus problemas. Saiu porta afora e iniciou uma caçada aos olhos pretos que lhe tiravam da sua tão amada e pacífica mesmice patética.

Maíra corria pela rua arborizada sentindo o spray fino da chuva fraca que caía enquanto o forte sol ardia sua pele. Essa mistura de estados metereológcos resultava numa bela explosão de cores no céu, um belo arco-íris, onde podia-se ver todos os espectros de cor. Mas a moça frenética nem percebeu a beleza das cores acima de sua cabeça... Só pensava nos olhos pretos e coloridos. Ela correu muito, e chegou a um lugar ermo, um casebre velho caindo aos pedaços, uma cerca quebrada, um pasto abandonado e um poço.

Ela parou de correr,aproximou-se do poço, olhou para baixo. O que viu? Sobre o espelho d'água, olhos pretos e o belo arco-íris do céu, mas agora na água. Olhos pretos e coloridos.

Maíra sentiu-se envolver por aquela mistura de preto e cores. Sentia as cores entrando por eu corpo, tomando conta de seu estômago, de seu pulmão enquanto os olhos pretos, o preto, tomava conta de sua mente até a completa escuridão.

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