terça-feira, 21 de dezembro de 2010

FUNERAL - PARTE 01

Aquele altar doméstico repleto de jarras de água, potes de arroz e alga... Aquelas velas acesas, com as chamas trêmulas por conta da movimentação que rondava a arca mortuária; aquele lenço branco sobre seu rosto; a visão dele deitado ali, imóvel, gélido — talvez gélido, pois ela não chegou a tocá-lo — aquele cheiro forte de incenso... Aquelas pessoas de vestimenta branca, destoando-se rispidamente das flores, tapetes e almofadas vermelhas que decoravam comumente a casa. Tudo aquilo a estava deixando embriagada.
Harumi sentia que ia perder os sentidos a qualquer momento. Tentava concentrar-se na voz do bonzo entoando sutras sagradas, mas as pessoas ao redor, recitando tudo em coro faziam-na sentir cada vez mais encarcerada naquela situação nauseante.
Um funeral, para a tradição, é o momento de demonstrar gratidão ao falecido e refletir nas coisas boas que vieram dele, além da inevitabilidade da morte. Harumi só conseguia pensar nesta última parte — a inevitabilidade da morte.
— Preciso recostar-me em algum lugar. ­— Cochichou para Yasu.
— Mas, senhora, não é apropriado que deixe a vigília, justamente sendo a esposa...
— Viúva! ­— Cortou, com rispidez, a recomendação da criada. — Ajude-me a sair daqui. Falta-me ar, minhas costas doem e esse cheiro de incenso... Esse cheiro de morte está revirando minhas entranhas. Prometo que estarei presente durante a cerimônia de cremação. As pessoas entenderão se eu me ausentar um pouco, devido ao meu estado.
— Mas, senhora...
— Vamos, Yasu! Não discutirei mais. Obedeça e leve-me até o jardim, para que eu possa respirar.
Harumi olhou para o bonzo, o Daimyô e para os familiares de seu falecido marido tentando transmitir-lhes dor pelo olhar, para justificar sua repentina saída durante a vigília. Pareceu-lhe que eles haviam entendido, talvez até consentido, mas para ela era indiferente. Só queria sair dali.
Caminharam um pouco pelo jardim até chegarem a um banco de madeira. Harumi sempre apoiada em sua criada. Parecia não poder mais sustentar o peso do corpo sozinha.
— Deixe-me!
— Senhora...
— Yasu, você está questionando extremamente minhas ordens hoje. Apenas faça!
— E se perguntarem?
— Diga que estou enjoada e com dores e que minha tristeza é tão imensa que tenciona todos os músculos de meu corpo, mas que estarei pronta para a cerimônia de cremação. Venha me pegar aqui quando chegar a hora. Agora vá!
Ouvindo os passos de Yasu distanciando-se pela trilha de pedras, Harumi podia ver nitidamente em sua memória momentos em que se sentava em um banco parecido com aquele, perto do lago na casa de sua família e ficava observando as carpas nadando. Eram coloridas e grandes e pareciam felizes, principalmente quando caía um pequeno fruto de uma árvore qualquer na água e elas disputavam qual o pegaria primeiro. Depois de ficar horas observando o lago, ela corria por entre as árvores, caia sobre as folhas e ficava olhando o céu, mais especificamente as nuvens. Via dragões, coelhos, folhas de chá, tigelas de arroz... Tudo que sua mente juvenil e sonhadora pudesse criar. Ficava ali olhando... Até cair no sono e sonhar. Sempre sonhava com aventuras.
Certa vez sonhou que estava sendo perseguida por um kappa. Uma criatura horripilante parte homem, parte rã que, segundo a mitologia japonesa, alimenta-se de fluidos humanos. Quanto mais ela corria, mais perto o kappa estava, até que ele a agarrou com as ventosas de seus dedos e começou a sugá-la. Ela tinha certeza de morreria naquela hora, mas voando mais rápido que o vento, surgiu um samurai montado em um dragão dourado que despedaçou o kappa com sua katana de ouro, colocou Harumi nas costas do dragão e partiu, levando-a para as estrelas. Um terrível pesadelo que acabou em um belo sonho.
Pensando nessas coisas Harumi acabou por, realmente, adormecer ali no banco de madeira do jardim. Estava, agora, defronte ao lago das carpas, mas todas estavam boiando, de barriga para cima, mortas. A água era suja e malcheirosa. Sentiu-se arrastada dali com força. Não estava mais no lago. Estava num lugar escuro, estirada em um chão de madeira, um peso sobre seu corpo... Mal podia respirar, sentiu uma imensa dor e fez-se um longo e quase eternal silêncio. Viu um vulto, uma armadura, uma espada que cortava ao meio a mais bela flor de sakura que a província já vira. Harumi tentava encontrar sua kaiken para realizar o seppuku, mas foi em vão. O tempo rodopiou vertiginosamente e Harumi casava-se com um samurai em uma estranha e confusa cerimônia... Ela só podia sentir a dor. Não conseguia entender as palavras... Só a dor.

— Ahhhhhhhh! — Gritou com agonia, acordando do sonho, caindo ao chão, abraçando os joelhos e gritando o quanto mais pudesse.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

PRÓLOGO

— As sakura pareciam bem mais graciosas naquela época. — pensou alto, enquanto observava o jardim e estendia um pouco o olhar até o bosque além dos muros que a cercavam. O cantar dos pardais que, antes, alegrava-a extraordinariamente, mais até do que as histórias sobre os destemidos e honrados samurais, agora a deixavam angustiada, aflita, sufocada.
Harumi lembrava-se do tempo em que atraía os olhares de todos na cidadela com a sua incrível beleza, assim com essas exibidas flores rosadas faziam nesta época do ano. Talvez fosse por isso que a incomodava tanto olhar para elas agora. Antes, elas costumavam ser coadjuvantes por onde Harumi passava. Senhores de terras dirigiam-se, com frequência, a sua família com propostas de casamento. Ela se divertia muito em pedir para seu pai recusá-las. Ela fazia muitas das vontades dela, o que era raro entre os patriarcas da época. — Se fosse possível retornar alguns anos... Apagar alguns passos e refazer alguns castelos... — Suspirou alto. Deixou-se levar por devaneios nostálgicos durante algum tempo, enquanto via o vento carregando as dolorosas pétalas rosadas das flores das sakura.
— Harumi, vamos! — Foi trazida de volta à realidade pela voz aguda de sua dama de companhia. — Já está na hora!
— Yasu, venha, ajude-me a levantar... — Era difícil para ela se locomover naquele estado. Apoiou-se nas palmas das mãos firmes e ásperas da criada e se levantou do pequeno banco estofado que ficava abaixo da grande janela do aposento. Deixou escapar um gemido, misto de esforço, desconforto e dor.
— Há algo errado senhora? — Perguntou a criada.
Todas as respostas ríspidas vieram-lhe à mente. Como se aquela velha não soubesse! Eram quase 7200 horas de coisas erradas e ela ainda tinha de ser gentil, cortês e, pior ainda: hospitaleira. Receberia o Daimyô para o chá. Provavelmente ele traria as condolências pela honorável morte horrível e sangrenta de seu marido defendendo a vida de algum membro importante da aristocracia, ou a honra preciosa de uma inocente pétala de sakura. Então, ela simplesmente respondeu:
— Está tudo bem, Yasu. Só um pouco cansada com tudo isso. Agradeço-lhe pela ajuda.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Papilote - Final





Quando amanheceu o dia, dona Tianinha levantou de supetão,dando os passos pesados de sempre e se deparou com um bando de criança dormindo espremida no cantinho da sala, e Maria Pailote toda esparramada, sozinha, na cama do quartinho da bagunça. A matrona tratou de espatifar com a molecada toda e perguntar o que tinha acontecido pra dormir todo mundo ali que nem rato pelado com frio no mato.

Maria Papilote levantou-se enquanto as crianças terminavam de contar o ocorrido na madrugada anterior.

- Dormiu bem prima? – Perguntou doa Tianinha.

- Muito bem! A cama tava muito boa...

- Mas ocê num tinha ido durmi no canto da sala perto da estante?

- Tinha... Mas eu vi a cama vazia e fui deitar lá.

- Bão! Agora vamo toma jeito que o sor tá quente lá fora e a casa tá uma baderna!

E foi a correria de sempre o dia todo.

À noite, quando seu Quinzinho chegou do serviço, todo mundo queria ouvir outra história. Sentaram-se todos na sala, em volta dele e ouviram sobre uma mulher de dois metros de altura que tirava trapos da boca, queimava no fogão de lenha e enfiava no nariz.

- Essa muié – Contou seu Quinzinho – Aparece sempre pras pessoa que fala nome feio. Ela põe medo inté a pessoa mijá nas carça, depois enrola ela nos trapo e põe no fogo e enfia as cinza no nariz.

- Valha me Deus!

- Credo em Cruiz! – Cada um soltou uma exclamação diferente.

- Mas num precisa ficá com medo não. Se oceis cumê bastante alho e cebola ela num ataca oceis não... Ela num suporta o chero desses tempero.

- Tá bão! Agora chega Quinzinho, que é hora desse povo i durmi!

Foram todos para seus cantos. A Papilote foi pra beirada da estante, só de olho nas meninas deitadas na cama de solteiro do quartinho da bagunça. Esperou um tempo, até ter certeza que todos estavam dormindo. Levantou-se sorrateiramente e foi resfriar as mãos no congelador.

Andou de vagar, ajoelhou na beira da cama das meninas, puxou a coberta de vagarinho e... Foi uma gritaria danada. Todo mundo acordou pra ver o que tinha acontecido.

A Papilote estava branca e atônita caída no chão do quartinho, as crianças em volta com cara de sono e dona Tianinha com ar de Triunfo.Ela tinha se escondido embaixo da cama. Esperou Maria Papilote chegar perto e puxou suas pernas. A moça ficou tão assustada e, depois do susto, tão envergonhada que decidiu ir embora, de volta pra capital no outro dia.




Total de visualizações de página